21 de abril de 2008

Razão na Base

Como será a vida de uma pessoa sem crenças? Ter o pensamento racional na base de seus princípios? Nossa reportagem conversou com dois ateus para entender melhor seu modo de pensar
Por Carlos Ferreira

Um senhor, bem humorado, sorridente, com seus cabelos brancos, 63 anos e óculos de aros redondos, conversando com um segurança do Centro Cultural São Paulo a espera de um repórter.
Este é Isaias Edson Sidney, dramaturgo, nascido em uma família católica, religião que ele mesmo seguiu fervorosamente até seus 14 anos, porém após ser apresentado ao espiritismo por seu irmão mais velho, começou a ler a bíblia com outro olhar, o olhar crítico e depois de estudar e conhecer outras filosofias se tornou ateu.
Isaias é um dos rostos da pesquisa realizada em 2004 pelo Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) onde foi identificado que 7,8% dos brasileiros são ateus ou sem religião.
Ser ateu como o próprio nome diz é não ter crença em um deus, seja ele Alah, Jeová, o Deus dos cristãos, ou outros nomes dados a esta divindade que é cultuada nas religiões monoteístas, ou seja, de apenas um deus supremo. O ateísmo é uma oposição ao teísmo, que tem como crença uma divindade como criadora da vida e esta pode ser demonstrado racionalmente, o deus dos teístas é conhecido como o deus dos filósofos.
O ateísmo vem aumentado conforme o tempo, mas no Brasil o preconceito contra estas pessoas é algo muito evidente. Em 2007 foi realizada uma pesquisa pela CBT/Sensus em parceria com a Revista Veja, nesta foi identificado que 59% dos entrevistados não elegeriam um candidato para o cargo de presidente da República se este fosse ateu, os negros tiveram 1% de rejeição, as mulheres 12% e os homossexuais 34%.
Para os pensamentos de Isaías esta pesquisa pode não ser tão concreta “Na condição de ateu, você pode ser o que quiser ter princípios éticos e não-éticos, qualquer um pode ser ateu”.
Isto pode ser confirmado com Paula Renata Pereira, 21, ex-estudante de publicidade e propaganda que hoje trabalha como operadora de cobrança.
Com idade e profissão diferentes de Isaías, Paula também é atéia e se declara como tal onde vai, percebe o preconceito citado nesta pesquisa e relata uma situação onde foi o personagem principal do preconceito de uma colega “Fui apresentada a uma colega e ao me declarar atéia, ela perguntou para uma de minhas amigas se não era perigoso andar em minha companhia”.


Filosofia de vida?

O ateísmo é considerado pela teologia um conceito filosófico, um conceito moderno, pois está critica a religião ocidental também é moderna.
Este conceito de filosofia começou a aparecer no século 18 com o Iluminismo “Os iluministas acreditavam que a existência de deus não podia ser demonstrada racionalmente”, diz Etienne Alfred Higuet, doutor em teologia pela Universite Catholique de Louvain na Bélgica, país em que nasceu e se formou.
Outra forma filosófica do ateísmo segundo Etienne são as filosofias de Sartre, principalmente no artigo “O existencialismo é o humanismo” O teólogo declara que “No contexto do artigo o ateísmo aparece como condição essencial para o existencialismo”.
Ao perguntar a Isaias e Paula este pensamento filosófico não condiz com a forma que encaram o ateísmo, dão menos importância à religião e a existência de um deus. Normalmente preferem não discutir questões religiosas com pessoas que possuem uma religião ou acreditem em divindades.
“Não é possível discutir sobre ateísmo com um teísta, pelo fato de que tudo esbarra na fé e em coisas que não possuem lógica ou razão”, afirma Isaías. Que também coloca a condição de que o ateísmo não se propaga como uma bandeira, filosofia de vida ou religião, e sim apenas a não existência de uma divindade suprema.
Paula ao ser questionada sobre o ateísmo ser um filosofia de vida se mostra muito sucinta “Não encaro minha condição de atéia como uma filosofia de vida, apenas não acredito em crenças e deuses”. Sobre discutir religião também é objetiva “Religião não se discuti, nestes casos não faz sentido, pessoas que possuem pensamentos tão distintos como fé e lógica chegarem a uma conclusão”.
Isto talvez explique o porquê do ateísmo não possuir uma sede ou organização onde são colocadas normas para uma pessoa se tornar atéia, ou viva em seu dia-a-dia uma doutrina ateísta.
O que pode ser encontrado são fóruns na internet discutindo sobre idéias de cada um, onde normalmente os ateus procuram conhecer melhor uns aos outros.
A divulgação das idéias ateístas é um dos principais fatores para o aumento da quantidade de ateus e para Isaías “O ateísmo, como não é uma filosofia de vida, não tem como objetivo combater a religião. Deve-se combater, e isto não é privilégio dos ateus, o obscurantismo religioso, a ignorância que leva as pessoas a cometerem atos insanos em nome da religião ou em nome de um deus” para que isto ocorra, à divulgação das idéias pode ser útil a partir do momento em que não for colocada em questão a existência ou não de divindades.


Ateísmo e Religião

Diversas batalhas já foram travadas, sejam elas filosóficas ou físicas entre o ateísmo e a religião, e estas ainda vêm acontecendo. Em alguns casos, tragédias são registradas por pessoas acharem que sua religião ou fé foram ofendidas por outras. Um destes episódios foi uma sátira realizada com 12 caricaturas de Maomé divulgadas em um jornal da Dinamarca. Os cartunistas dinamarqueses foram ameaçados de morte pela comunidade islâmica, trazendo consigo muitas manifestações contra o jornal que publicou as caricaturas.
Para Isaías estas atitudes são barbaridades, coisas que poderiam não acontecer, mas entende isto como um processo de evolução “As guerras religiosas são parte da ignorância do homem. O homem por si só é apenas isto que vemos mais animal do que ser pensante, não é o anjo decaído, mas sim o animal evoluído e ainda não concluído que está em continuo processo de evolução. A existência de deus é um erro da humanidade poderia não ter ocorrido, mas aconteceu”.
A existência de deuses e divindades pode ser datada a partir do surgimento de mitos, que são explicações para a realidade que aquela sociedade se encontra, estas explicações não possuem nenhum embasamento teórico ou cientifico que comprovem suas afirmações.
As primeiras religiões são as que hoje conhecemos como mitologia, conjuntos de mitos que explicam a cultura da sociedade, as religiões que hoje permanecem em nossas culturas também são baseadas em mitos e figuras de linguagem da época em que foi idealizada ou escrita.
A questão da existência de deuses ou entidades divinas já perdura há séculos na humanidade se são verdades ou não, cabe a cada um chegar a uma conclusão, ou permanecerem como agnósticos, pessoas que nem acreditam e nem desacreditam na existência de Deus. Enquanto a sociedade decide suas opções religiosas, esperemos que ateus e religiosos de diferentes filosofias e etnias consigam manter um diálogo amigável e que as definições e os preconceitos contra ateus se desfaçam com o tempo e que as pessoas não sejam julgadas por sua religião ou a falta de uma.

Preconceito na história

A Inquisição, um dos atos mais sangrentos da Igreja Católica mostra que o preconceito religioso faz parte da história

Pessoas consideradas hereges, bruxos, ou que duvidavam da verdadeira fé pregada pela Igreja Católica, foram perseguidos pela Inquisição. Estes infiéis eram curandeiros, pequenos comerciantes e até mesmo católicos que excediam as regras da doutrina imposta pela Igreja.
A Inquisição foi um movimento que começou no sul da França contra os Cátaros, religiosos que reconheciam Jesus como um grande profeta, mas não filho de Deus, logo se tornou um movimento da Igreja Católica através do Papa Gregório IX, contra os infiéis a Inquisição teve grande poder na Espanha e também em Portugal.
No Brasil a Inquisição também foi realizada “Existia uma busca do diabo no Brasil colonial”, afirma José Paulo Germano, doutor em história pela USP.
Neste período no Brasil não havia pessoas que poderiam ser responsáveis pelo julgamento dos acusados, por este motivo padres e religiosos do alto Clero da Espanha e de Portugal vinham ao país “Estes inquisidores, já vinham com os instrumentos de tortura e questionamentos prontos de seu país de origem”, afirma Germano.
A punição normalmente era a pena de morte realizada através do fogo, o ato de queimar o acusado tem duas explicações. “Nesta época existia uma grande crença na mistificação e se acreditava que o fogo era o único capaz de acabar com esta impuridade do condenado”, diz Germano, outro fator importante é a não interferência direta do homem na morte do individuo, uma forma de punição que a Igreja encontrou como purificação.Hoje a Igreja sente por estes atos realizados, o Papa João Paulo II em 2000 pediu desculpas ao povo em nome da Igreja pela Inquisição através de uma carta. Estima-se que 25 mil pessoas foram mortas neste período, o que é um número relevante para época, que contava com uma população aproximada de 16 milhões de pessoas.

19 de abril de 2008

Educação: Eles querem uma pra viver

Aqui eles tiram as máscaras que lhe foram atribuídas: Adolescentes da periferia, falam sobre suas obrigações diárias, interação com o mundo, anseios, o gosto por cultura e principalmente que são feitos de sonhos como qualquer um de nós, tanto quanto são feitos de ossos
Por Anelize Gabriela


Rua das Lágrimas altura do número 2000, ponto de referência “Supermercado da Praça”, este foi o meu destino no feriado do dia 22 de Março, Sexta-feira da Paixão. O objetivo? Encontrar com as vozes rotuladas pela sociedade como “marginais” ou “coniventes com o crime”, por simplesmente morar em uma comunidade chamada Heliópolis, considerada a maior favela da capital paulistana e a segunda maior do Brasil.
São nestas áreas mais pobres que se concentram 31,4% dos paulistanos, dos quais 8,9% são jovens, de acordo com a pesquisa realizada em 2005, pela Fundação Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados).
Heliópolis está localizada na região sul de São Paulo onde vivem 125 mil pessoas, sendo que 52% deles têm de 0 a 25 anos. Abandono em casa um olhar viciado sobre a vida nas comunidades da periferia para adotar novos olhos, livres de pré-conceitos e são através deles que apresentarei dois nomes que refletirão o que pensam e como vivem os adolescentes desta comunidade.
Estes nomes são: Regis Foge Jacinto, 18, moreno, alto, magro, com um boné branco de lado, uma camiseta com todos os rostos rappers que mais gosta, sempre com um sorriso no rosto, embora muito tímido e sucinto em suas respostas. E Bruno Correia Milani, 17, alto, branco, calças largas, aparentemente mais tímido, mas foi só dar uma brecha que ele foi logo falando o que pensa, os dois são tão inseparáveis que não ouso contar suas histórias individualmente nesta reportagem.
Regis e Bruno têm uma rotina bastante comum: Acordam, vão para um projeto social e depois do almoço vão para escola. Devido à falta de dinheiro andam 1 hora e meia a pé, até o Sesc Ipiranga para praticar natação, musculação e basquete.
O basquete está presente nos sonhos dos dois meninos, pois Bruno quer ser jogador e Regis professor de educação física, por conta da paixão pelo esporte.
Regis mora com a mãe diarista e o pai que trabalha como segurança de uma universidade, já Bruno mora somente com a mãe, pois seus pais são divorciados ela recebe pensão alimentícia, mas faz doces por encomenda para complementar a renda familiar.
Os meninos não gostam de balada nem de funk, dizem que este gênero musical é “modinha”, apenas para ter fama e dinheiro; não fumam, não bebem, gostam da internet como uma ferramenta de pesquisa, Bruno dá um exemplo: “Todo mundo falava sobre células - tronco e eu não sabia o que era e logo fui atrás de um site de notícias para saber melhor sobre o assunto”, Regis também utiliza a internet para se manter informado e fazer bases de rap.
Aliás, se tem algo que estes dois adoram é a ideologia hip hop e as músicas de rap.O por que? Regis faz questão de responder pelos dois, “Gostamos de rap por conta das mensagens das músicas, que são positivas, falam sobre a nossa realidade e o preconceito que os músicos sofrem por serem negros e pertencerem à periferia”.
Bruno conta que este preconceito está dentro de sua própria casa “Minha mãe não se acostuma em morar aqui, diz para eu tomar cuidado, pois todos aqui são marginais. Ela tem medo que eu me envolva com o crime, o crime existe, mas não são todos que participam, a maior parte das pessoas que eu conheço não”.
Quando pergunto sobre suas relações com os estudos, recebo a seguinte resposta, “Não é certo quando dizem que por morarmos na periferia, não gostamos de estudar. A gente gosta, mas o que adianta se o ensino é ruim e quando reclamamos, o governo só troca os professores por outros 20 que também não estão nem um pouco interessados em ensinar”.
São poucas as oportunidades para os adolescentes que moram em periferias. Devido à falta de renda para profissionalização, investimento em educação, exposição aos efeitos da criminalidade, eles conseqüentemente prevêem um futuro que encontrarão dificuldades para ingressar em uma universidade e se inserir no mercado de trabalho.
Segundo a pesquisa de Vulnerabilidade Juvenil da Fundação Seade, nas áreas ricas, 75,7% dos jovens freqüentam o ensino médio, enquanto nas áreas menos favorecidas eles representam 62,5%. No que diz respeito à evasão escolar, 14,9% dos jovens que residem em áreas mais pobres abandonam a escola, enquanto nas áreas ricas o índice é de 7,6%.


Em meio de toda dificuldade sempre há uma oportunidade


Regis e Bruno participam do projeto chamado “Agente Jovem” promovido pela Ong UNAS (União de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco), em parceria com o Governo Federal.
A instituição conta com 150 adolescentes e 4 educadores, além de obter formação humana e sócio-cultural, esses jovens recebem uma bolsa auxilio de R$65,00 por mês.
O projeto proporciona oficinas educativas com temáticas sobre meio ambiente, saúde, cidadania, customização de desenhos e roupas, além de atividades culturais e artísticas, como teatro e música. As aulas do projeto “Agente Jovem” acontecem de forma dinâmica e os temas são abordados em forma de debates.
As cadeiras são colocadas em circulo, isto demonstra que todos são iguais e têm o direito a palavra, os professores se igualam aos jovens para que ocorra a troca de conhecimento. Bruno e Regis fazem questão de falar “Se as aulas da escola fossem da mesma maneira que acontecem aqui, com debates e atividades culturais, a gente ia até mais animado para a escola estudar”.
O projeto é divido em duas fases, seis meses de teoria e após este período mais seis meses de prática, onde os adolescentes agem como multiplicadores de ações disseminando na comunidade o que aprenderam dentro de sala: a vontade de transformar realidade que vivem.
Há diversos projetos sociais que tem o objetivo de levar até os jovens, conhecimento e qualificação profissional, possibilitando que eles tenham sua primeira oportunidade de emprego, geração de renda, e também faz com que reflitam sobre o mundo que vivem.
“Procuramos o projeto inicialmente por causa da bolsa mensal e principalmente por que não tínhamos o que fazer de manhã. Então nos inscrevemos e agora já estamos a mais de um ano no projeto que traz conhecimento e cultura para nossa realidade”.
“Jovem aprendiz” é outro projeto que tem o mesmo intuito, oferecer profissionalização a jovens carentes de 14 a 24 anos. Para poder participar do projeto é necessário não ter experiência no mercado de trabalho e ter renda familiar de até 2/3 do salário mínimo por pessoa.
Claudia Lucia dos Santos, 39, é assistente social da prefeitura de Embu das Artes há dois anos diz, “O perfil dos jovens que nos procuram, são aqueles mais interessados em fazer cursos para ter uma oportunidade de inserção no mercado de trabalho”.
Pois é meu caro leitor, aqui você conheceu uma parcela da visão que os adolescentes das comunidades periféricas têm sobre a sua própria realidade, como foi mostrado pelos meninos de Heliópolis.
A criminalidade existe no cotidiano destes jovens, mas até onde uma condição precária de vida interfere decisivamente na formação de um individuo e em suas relações com a sociedade?Até onde uma sociedade que se considera tão evoluída vai encarar diferenças sociais como conceitos generalistas de que todos que moram na periferia têm como opção de vida somente a criminalidade?
A declaração de Bruno quebra esses paradigmas de que a maioria dos moradores de periferia são peças integrantes do crime “Entrar para criminalidade apenas é uma opção de vida dentre diversas que temos. Morar em uma comunidade de baixa renda, não é justificativa para traficar ou praticar roubos. Uma vez que alguém decide tomar este caminho fica difícil sair desta vida, por isso não estendemos porquê alguns de nossos colegas optam por se sustentar ou comprar aquilo que se deseja desta forma”.Quer saber “Somos um exemplo disso, somos felizes com o que temos e se eu tivesse mais dinheiro minha vida ia melhorar por que eu poderia, por exemplo, comer alguma coisa que tenho vontade, mais um isto me faria mais feliz, por que feliz nós já somos”.


Uma andorinha faz educação...

Esta andorinha é Flavia, que quando adolescente percebeu que através do seu esforço podia trazer mais educação periferia

Com uma camiseta laranja e bermuda cinza, foi assim que Flavia
Gomes de Assis 27 se descreveu como estaria vestida para que eu a identificasse em frente ao supermercado. Foi Flavia que me levou até a comunidade e ao universo dos adolescentes Regis e Bruno.
Ela é coordenadora do projeto “Agente Jovem”, trabalha há 8 anos envolvida com projetos sociais e há 7 anos junto aos adolescentes e a UNAS.
A sua primeira experiência foi através da música. “Desde criança meu pai sempre me incentivou com a música. Eu sempre fazia algumas percussões em casa e foi com 19 anos que fui convidada para auxiliar os professores da ‘Creche da Mina’ aqui na comunidade mesmo”. Flavia desenvolveu um trabalho com a pré-escola e despertou, através da música, o interesse dos alunos em aprender, adaptando-os ao ambiente escolar.
As músicas englobavam o conteúdo das aulas, cantigas infantis, como “Atirei o pau no gato” e “Terezinha de Jesus” essas canções faziam com que as crianças se acalmassem e prestassem a atenção nas aulas.
O que lhe impulsionou a trabalhar com os projetos sociais foram as condições precárias de sua infância. “Somos uma família de seis filhos e sempre passamos por dificuldades financeiras em casa, me lembro de quando eu era criança eu e meu irmão de 10 anos íamos até a feira por que meu irmão tinha vontade de comer frutas e não tínhamos dinheiro para comprar, então dia de feira, era dia de deixar a vergonha de lado e ir pedir frutas, morria de vergonha, mas fazia isto pelo meu irmão”.
Uma fala de seu irmão que só de lembrar a faz chorar: “Vamos fechar os olhos e a gente imagina que estamos comendo aquele lanche que está passando na TV, só assim a gente vai poder matar a nossa vontade”.
Foi prestando atenção na sua comunidade e convivendo com os meninos dos projetos sociais que Flavia reconheceu que sua vida não era tão difícil quanto imaginava e podia fazer algo para ajudar a mudar a sua própria realidade.
Após o seu trabalho com crianças percebeu que sua vocação não era bem para música e sim como educadora e foi convidada para participar dos projetos com adolescentes na UNAS: “Adolescentes não querem que você seja melhor do que eles, só consegui ter acesso a eles, literalmente ‘trocando idéia’. Os conquistei pela emoção, por aquilo que identifico que os machuca e assim encontrei uma brecha para ajudá-los”.
“Cabeça vazia é oficina do diabo”, este era um dos pensamentos de Flavia quando andava pela comunidade e via as crianças e adolescentes sem ter uma ocupação, ela se sentiu motivada a fazer algo para transformar este cenário, trazendo cursos profissionalizantes e cultura para Heliópolis.
Flavia critica a metologia de ensino atual e diz: “Na escola estes adolescentes não são apresentados para cultura, por isso algumas pessoas tem a idéia de que jovem da periferia não gosta de cultura e informação, mas como alguém vai gostar de alguma coisa da qual não conhece?”
Ela também reforça que os professores deveriam ajudar na formação do ser humano e não simplesmente fazer o seu trabalho sem se preocupar com a vida de cada um de seus alunos.“Os professores como não conhecem as dificuldades que os meninos enfrentam, muitas vezes falam para eles irem embora para casa calçar um tênis, pois vão a escola de chinelo, sem entender que eles não tem condições de comprar um”.
Flavia ainda era adolescente quando se encheu de coragem, que significa agir com coração, para ajudar o próximo. A sua felicidade hoje é sempre contribuir para ter um mundo melhor e ver seu sonho realizado: depois de cinco anos de espera, Flavia é uma futura pedagoga.


Uma contribuição da minha amiga, aspirante à jornalista!

Contra a maré




Os Franciscanos são religiosos que escolheram não acumular bens, viver da mendicância e manter um contato maior com moradores de rua. Ao contrário do que prega a sociedade fazem da pobreza, uma opção de vida.

Por Michele Carvalho.

Bem na esquina da Rua Plácido de Castro na Vila Invernada, onde as donas de casa retornam da feira carregadas de sacolas e onde as crianças correm a pé ou de bicicleta, encontro uma casa que logo de cara mostra por que está lá. Ao ver franciscaninhos pintados na parede principal da casa, percebo ter chegado à Toca de Assis, Bom Samaritano.
Toca de Assis é o nome dado a fraternidade que tem como objetivo acolher e viver como os pobres, são casas onde vivem os Franciscanos, quando não estão nas ruas, e é também onde os moradores de rua encontram um lugar para fazerem suas refeições diárias, tomar banho, cortar o cabelo e fazer a barba.
Bom Samaritano é o nome de uma dessas casas e, quando me aproximo do portão vejo uma garagem com algumas telhas encostadas no lado direito da parede, alguns bancos e ao centro uma mesa comprida. Ao entrar, preciso aguardar alguns minutos na garagem enquanto as irmãs estão em oração.
Nesta garagem, alguns homens dormem encostados nessa mesma mesa ou na parede, imunes ao canto do pássaro preso na gaiola e aos comentários de outros homens que assistem à televisão, interessados na reportagem sobre o Brasil da década de 60. Um deles bem mais curioso, o que abriu o portão e avisou as irmãs de minha presença, não tira os olhos da tela e também participa da reportagem com suas lembranças.
Esses homens são moradores de rua, que além de satisfazer as necessidades básicas também participam de orações. As irmãs explicam que no começo a maioria deles procura a casa somente pela comida, mas com o passar do tempo alguns se interessam também pelas orações.


O momento da renúncia

Quando entro na casa encontro um grupo de jovens meninas, todas com suas vestes marrons e cabelos curtos, tão ocupadas com os afazeres rotineiros da casa que algumas nem se incomodam muito com a minha presença. Sento ao lado da mesa, onde ainda está posto o café-da-manhã, Cibelle Lopes Lucas, uma das moças que moram na casa senta ao meu lado e então começamos nossa conversa.
Ela entrou para a fraternidade com 22 anos e hoje com 25, fala com um visível conhecimento das regras e fundamentos da vida religiosa. O primeiro sinal de sua vocação surgiu quando ela participou de um retiro espiritual na cidade mineira de Governador Valadares, depois disso ela se viu cada vez mais envolvida com trabalhos sociais até que chegou um momento em que sentiu que não fazia o bastante, “o coração pede mais, o que você faz é pouco”.
Impulsionada por essa necessidade de fazer mais pelos moradores de rua, Cibelle não encontrou outro conforto, a não ser desistir dos seus planos de fazer uma pós-graduação para entrar na Fraternidade Filhos e Filhas da pobreza iniciando sua vida de renuncias.
Quem a vê com as vestes peculiares dos religiosos, sem nenhuma maquiagem nem acessórios de beleza, não imagina que é formada em Ciências da Computação, nunca antes pensou em ser freira e nem reparava nos mendigos de sua cidade. Mas confessa que o começo foi difícil, não conseguia nem ao menos estender a mão aos pedintes, mas a convivência ajudou muito e hoje abraça a todos que encontra nas ruas.
A notícia do seu ingresso na Toca não foi bem recebida por seus pais, pois sua irmã já fazia parte da Fraternidade. Seu pai investiu em seus estudos e depositou nela todas as esperanças de ter uma filha formada. Quando questionada por sua família qual o sentido de gastar tanto dinheiro para depois abandonar tudo, chorou muito e não compreendia a atitude de seus familiares.
Ainda hoje, quando se trata de família, a vida de consagração total a Jesus se torna menos compreensível ainda aos olhos da sociedade. Os religiosos e religiosas não falam muito com seus familiares e esse pouco contato é feito uma vez por mês pelo telefone. Eles também podem receber a visita da família na Toca e tiram férias de sete dias por ano.
Cibelle diz que a saudade aperta, pois são seres humanos e não estão livres de sentimentos, mas o amor que os impulsionam a levar essa vida é inexplicável e sobrenatural, “essa vida é humanamente impossível”.


A vida na Toca

As quinze irmãs dividem a casa Bom Samaritano, com o espaço reservado para as coisas dos moradores de rua, ou irmãozinhos, como são chamados por elas. Eles têm sabonete, xampu e outros acessórios de higiene, tudo bem separado em potes de plástico com seus respectivos nomes, pois as irmãs têm um controle de quem freqüenta a casa todos os dias.
A casa e todo o restante são doados, as irmãs e os pedintes dependem dos benfeitores para sobreviverem. Existem também, algumas pessoas que não se consagraram totalmente à vida religiosa, mas auxiliam a casa e seus freqüentadores.
Os moradores de rua são recebidos na casa na parte da manhã para o café e depois voltam para o banho e o almoço. Todos já se conhecem e também às irmãs, conversam e contam suas histórias. Depois do atendimento dentro da casa, é hora das irmãs saírem para a rua e ir ao encontro dos que não vão até elas.
Esse trabalho é chamado de “Pastoral de Rua” é realizado de sábado a quarta-feira, pois as quintas e sextas-feiras são reservadas para as orações. Elas carregam uma caixinha com os primeiros socorros e vagam sem rumo, até encontrar alguém que precise de seus cuidados.
As pessoas que elas encontram têm as unhas e cabelos cortados, a barba feita, ferimentos tratados e alguém para conversar.
Nas ruas elas encontram todo o tipo de pessoa, algumas se surpreendem com o fato das Franciscanas se sentarem ao seu lado e as questionam porque são diferentes das outras pessoas que passam e nem notam sua presença. Outras já perderam a condição humana e não podem mais ficar nas ruas, pois já não têm saúde para viverem sozinhas. Então são levadas para as casas de acolhimento.


O convívio com os moradores de rua

Ao caminharem pelas ruas do centro de São Paulo vestidos com as marronzinhas, nome dado as suas vestes, de chinelo ou descalços conversando e cuidando dos moradores de rua, os Franciscanos são tachados de loucos. Cibelle diz que a maioria das pessoas não vê sentido em viver uma vida de pobreza e dificuldades, “compartilhamos também dos mesmos preconceitos e humilhações dos moradores de rua”.
Já com os sem teto a situação é bem diferente. Os religiosos são respeitados e bem recebidos, mas Cibelle admite que a aproximação é mais fácil pelo fato deles usarem as marronzinhas e também afirma que eles sentem muito medo e não deixam ninguém se aproximar, pois são muito maltratados nas ruas, “A Rota passa e tira tudo dos irmãos”. Ela conta as histórias que viveu na rua e fala que sua luta é para dar dignidade a essas pessoas.
Trabalhando como porteiro da Capela de Santo Antonio no Centro de São Paulo há 11 meses, José Luiz César, 48, é testemunha do trabalho dos Franciscanos. Ele fala com firmeza sobre os Franciscanos e me indica todas as Tocas da região. Em pé, na frente da Capela José Luiz conta do cuidado diário que os estes religiosos têm com os pedintes daquela região, “Eles sempre estão aqui, chegam um pouco antes da missa e logo depois de assistirem à celebração vão ao encontro dos sem teto”.


O início da Toca

Segundo a história, São Francisco de Assis foi um homem rico que começou sua conversão dando esmolas para os pobres e leprosos, até chegar um momento onde doaria suas próprias roupas. Contrariado com as atitudes do Santo, seu pai exigiu a devolução de todo seu dinheiro doado em forma de esmolas.
Em sinal de protesto e renúncia, São Francisco despiu-se em praça pública abrindo mão da herança de sua família para viver com os pobres e leprosos de sua época.
Assim como São Francisco, os religiosos de nossa época, inspirados nesse amor a Jesus Cristo e aos mais necessitados também fazem votos de obediência, pobreza e castidade e seguem esse caminho trilhado há mais de oitocentos anos.
Entre esses seguidores está o padre Roberto José Lettieri, o fundador da Toca de Assis. Quando ainda era um seminarista, ele saia todas as noites para conversar e ajudar as pessoas que viviam nas ruas da cidade de Campinas, com o tempo essa prática foi ganhando mais adeptos e em 1994 surge a primeira Toca. Hoje ela existe em quase todos os estados brasileiros, saciando essa ânsia de viver o carisma do Santo de Assis.



Entre judeus e franciscanos

Mesmo dentro de sua casa os franciscanos encontram dificuldades em realizar suas boas ações


Existe também outro tipo de Toca, são as casas de acolhimento. Diferente da Casa Bom Samaritano, esses lugares abrigam as pessoas que não têm mais condições físicas nem psíquicas de viver sozinhas nas ruas, elas moram com os religiosos que cuidam da alimentação, das roupas e até levam os moradores da casa para o hospital, quando necessário.
Mas acontece que nem todo mundo aceita esse trabalho dos Franciscanos, é o caso dos vizinhos da Vila de Assis, uma Toca de acolhimento que funciona nos Campos Elíseos, região central de São Paulo. Lá os moradores que residem em volta da casa reclamam da grande movimentação de pessoas, principalmente moradores de rua.
Ao todo são 110 pessoas, acolhidas por 17 Franciscanos vivendo na casa dos Campos Elíseos, sem contar os moradores de rua que vão à casa todos os dias para fazerem suas refeições e tomar banho, pois o trabalho desses Franciscanos se estende também as pessoas que não moram na casa.
Desde a inauguração da casa, há quatro anos, os Franciscanos e os moradores da casa são alvo de processos, abaixo-assinados e reclamações da vizinhança, “existe um processo de 200 páginas”, diz o irmão Jhony Cruz da Silva, 23, um dos irmãos que atuam na casa.
Os irmãos também atribuem às reclamações ao fato da maioria dos vizinhos serem judeus, “acredito ser também uma questão religiosa”, diz o irmão Jhony ao explicar os motivos dos problemas que enfrentam com os moradores da região. O caso já chegou até os ouvidos do prefeito Gilberto Kassab, mas para a revolta de alguns, a casa continua com as portas abertas ajudando aos que precisam.