12 de novembro de 2008

Uma casa do tamanho de São Paulo

A cozinha são os bares da cidade, o sofá cede lugar ao pequeno banco de madeira e os transeuntes são os vizinhos. Seu João deixa a cidade de Francisco Morato antes do sol nascer e faz das ruas da cidade uma segunda casa


Uma cama e um armário é tudo o que espera por ele em sua casa em Francisco Morato. Ele não precisa de mais nada, sua maior carência é não ter alguém para compartilhar conversas e sentimentos. Seus atos e palavras traduzem o medo e a repulsa da solidão. No meio de dezenas de rostos o seu destoa entre a multidão que mais parece um exército marchando para lugar nenhum. Mas ao mesmo tempo ele está esquecido, num lugar bem abaixo de nossa visão.
Sempre sentado no mesmo lugar, é muito raro não encontrá-lo em baixo da árvore em frente ao Parque Trianon Masp. De longe já reconheço sua silhueta. Os poucos cabelos brancos contrastam com a pele queimada do Sol e a força de suas expressões faciais, que nem mesmo as marcas deixadas pelo tempo conseguiram encobrir. Quem o vê, nem imagina que o motivo maior de sua permanência nas ruas é afugentar as lembranças de um passado marcado por grandes perdas. Na frieza dos asfaltos dos grandes centros urbanos encontra uma alternativa, um refúgio para a solidão.
O senhor de aparência frágil, que pede esmolas traz consigo um potinho, onde as pessoas depositam o dinheiro doado, um banquinho sobre o qual se senta, uma mochila com algumas coisas para passar o dia e um sorriso sincero que só percebi, quando me aproximei. Seu nome é João Jacob, dois apóstolos de Cristo também tinham esses mesmos nomes, detalhe que ele faz questão de lembrar.

As perdas do caminho
São José do Rio Preto, cidade das lavouras de café, é também o lugar que viu seu João Jacob nascer, há 86 anos. Foi dessas terras
repletas de café que seu pai tirou o sustento da pequena família, sua mulher e apenas um filho. Aos 12 anos, o menino viu sua família ficar menor ainda, seu pai sofrera um infarto e o deixara com a responsabilidade de ser o único homem da casa e conseqüentemente, com a obrigação de sustentar sua mãe. Abandonou a escola e, seguindo a mesma profissão do pai, passava os dias nas lavouras de café.
O trabalho na lavoura além de sustentar a casa, também o fez forte. Seu João fala com orgulho e tristeza da força física que tinha. Hoje seus olhos se enchem de lágrimas ao se lembrar que além de não ter um braço, também envelheceu sozinho. Mas as oito décadas de vida, só são denunciadas pela sua aparência, a mão entrevada pela artrite e os pés inchados e cinzentos que a falta de circulação do sangue deixa de lembrança. A alma de seu João traz uma vontade imensa de viver e ao mesmo tempo uma tristeza que refletem em seus olhos.
“Minha mãe saia, então eu deixava tudo limpinha para ela”
Sua vida é marcada pela morte das pessoas que amou, além do pai, sua mãe também o deixou muito cedo, com 15 anos seu João se viu sozinho no mundo. Mas o costume das pequenas cidades do interior, onde as pessoas se casam muito cedo, o ajudou a achar conforto em sua esposa.
Dez anos depois, a vida corria normal, seu João trabalhava na lavoura, tinha uma casa, uma mulher e filhos. Até o dia em que ele perde mais uma vez. Enquanto trabalhava no cafezal, fora mordido por uma cobra de café, espécie muito comum nessas plantações, que pode ser facilmente confundida com as folhas por sua cor verde. A falta de informação e de cuidados necessários fizeram com que a mordida se transformasse em uma gangrena, sem chance de salvar seu braço.
Hoje seu João é aposentado e sabe se cuidar muito bem sem um dos braços, ele pega ônibus sozinho, vai ao médico e cuida da casa. Ele conta que pede esmolas para completar a renda, pois toma muitos remédios e ainda ajuda a cuidar dos seis netos, que moram no mesmo quintal. Apesar dos 13 filhos, dez do primeiro casamento e três do segundo, as crianças e o filho são os únicos parentes com quem seu João tem contato. Porém, seu filho parece não perceber a imensa falta que faz ao pai.

Hora de esquecer
Cada um tem uma história, algumas são difíceis de acreditar e a da vida de seu João é uma dessas, não que ele tenha realizado grandes feitos ou coisa parecida. Ele apenas passou e passa pela vida carregando feridas que resultaram na grande solidão que sente.

“Na vida só tive sofrimento”

Depois de perder a primeira esposa e um dos filhos, fatos que não gosta muito de comentar, ele decidiu ir embora de São José do Rio Preto, na esperança de deixar para trás todas as tristezas que a cidade fora testemunha. Esses acontecimentos deixaram muitas dores em seu João e até hoje ele não pensa em voltar para o local onde nasceu. “Estou desgostoso de voltar para lá”.
Trocou São José pela cidade de Santos e foi no litoral que ele achou um novo amor. Sua segunda esposa, Antonia, morava no mesmo prédio que se instalara assim que chegou na cidade portuária. Casada e com um filho pequeno, ela vivia ameaçada pelo marido que bebia muito. Depois de algum tempo de conversa eles decidiram viver juntos e o lugar escolhido foi a capital de São Paulo.
Para sustentar a nova família que ganhara, ele trabalhava como camelô. Tinha uma barraca onde vendia miudezas, mas como não conseguira a licença para trabalhar a fiscalização levou toda sua mercadoria. Foi a partir daí que seu João começou a pedir.

Vista de baixo
Sentada no chão, ao lado de seu João pude comprovar mais uma vez as dicotomias de nossa existência. Embaixo, onde apenas os pés alcançam, encontrei a maior expressão da palavra solidão, significado que dicionário algum conseguirá exprimir. Em cima, no mundo das aparências, são poucos os que conseguem perceber o pedido de atenção que sai não da boca, mas sim dos olhos de seu João, o egoísmo e a pressa de um mundo cada vez mais exigente, muitas vezes não deixam percebê-lo.
Em nossas conversas seu João deixa transparecer todo o desespero por estar sozinho, numa mistura de desabafo e súplica, ele fala que prefere o movimento da rua às paredes mudas de sua casa. Porém, a solidão de seu João não é dessas que levam as pessoas ao enclausuramento. Ao contrário, o simpático senhor não alimenta esse sentimento e busca esquecê-lo em cada esquina, nas conversas com quem se aproxima e nas amizades que conquistou nessas quase três décadas de mendicância.
Ele intercala suas histórias entre o passado e o presente. Hoje a companhia do café-da-manhã é o atendente do bar, almoça e passa a maior parte de sua vida nas ruas. Tem lugares fixos para pedir, vai a quase todas as festas religiosas da cidade, assiste às missas e faz amizades aonde vai. “O pessoal gosta muito de mim, eles me ajudam muito, tudo o que tenho é ganhado.”
“O que vou ficar fazendo em casa sozinho, olhando para as paredes?”
Quando volta ao passado, mais uma vez seus olhos se enchem de lágrimas. “Eu estava com ela na ambulância quando o médico entrou e falou que não tinha mais nada a fazer, a mulher já está morta”. Foi assim que seu João perdeu sua última esposa. Ela tinha diabetes, mas não sabia, adorava comer doces e ele sempre os trazia para ela. Essa foi uma das poucas vezes que vi seu João chorar, enquanto ouvia as histórias de sua vida.
Seu João pede esmolas há aproximadamente 30 anos, tempo bastante para se acostumar com os olhares dos quais é alvo. Sentado no pequeno banco ele se sente em casa, toma os remédios, come e até cochila. Por duas vezes precisei acordá-lo para conversamos. Na primeira vez que me sentei ao seu lado, era impossível não perceber a reação das demais pessoas, os olhares variavam entre pena, indiferença, solidariedade e medo. Mas o pior de tudo é, que muitas vezes ele não é visto.
Ao final de cada conversa, enquanto me distancio do pequeno mundo solitário de seu João, vejo sua silhueta mais uma vez se afastar, outra vez misturada entre as dezenas de rostos que aparentemente não dizem nada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Pedi o endereço do seu blog para o Carlos, estava curioso para saber como você escreve. Gostei do que vi, parabéns!

Esse perfil do João Jacob ficou muito legal, tem o seu jeito. Só não sabia que Jacob era nome de discípulo, mas é bem provável porque Jesus tinha muitos discípulos além dos 12 que o acompanhavam de perto.

Muito legal o perfil
Rudá Costa