19 de abril de 2012

Oioporavo (escolhido)

A casa de pau a pique está fechada. Mas o entra e sai das kyringue (crianças) e mulheres e a cantoria que ecoa de dentro anuncia que todos estão lá. Apesar da tarde fria, o sábado é de festa para os moradores da Tekoa Pyau, no Pico do Jaraguá. Mesmo vivendo no coração de uma região que abriga uma das poucas vegetações remanescentes da mata atlântica na cidade de São Paulo, - aproximadamente cinco mil hectares – o espaço reservado aos cerca de 600 índios da aldeia é delimitado por muros que cercam toda a tribo.
Do lado de fora das paredes, folhas secas cobrem toda a calçada e é preciso ficar atento para não bater a cabeça em um dos galhos mais baixos das árvores do local. A rua segue asfaltada e sem muito movimento de pedestres até a entrada da aldeia, onde o chão é de terra batida. Lá dentro, reunidos na Opy’i (casa de rezas), os guaranis comemoram a chegada de mais um ano. O Batismo de Ervas é a cerimônia que marca o Arapya, o ano novo indígena. Sentado em um dos bancos da Opy’i e encostado nas paredes feitas de madeira e barro, Tupã fala do significado daquele dia. “As folhas de mate simbolizam toda a natureza e nós agradecemos o que passou e pedimos um ano melhor”. Na cultura indígena, os gelados ventos de agosto derrubam as folhas secas das árvores, para dar lugar a uma nova folhagem. O que também acontece com a vida na aldeia.
É também no primeiro dia do ano que as kyringue são batizadas. Elas só ganham uma nomeação indígena aos 7 anos, até lá, são chamadas pelo nome branco de registro. Isso porque, nos costumes antigos a pessoa começa a formar seu caráter e ter consciência do que é a partir dessa idade. Ao Pajé, cabe a responsabilidade de saber como cada um vai se chamar. Como líder espiritual, só ele tem esse poder.
O fim da tarde se aproxima e anuncia mais uma noite fria. Depois da cerimônia é o momento de todos voltarem para seus afazeres. Aos poucos, a Opy’i fica vazia e o burburinho Guarani perde força. Em poucos minutos, a harmonia de um coral formado unicamente por vozes femininas invade o lugar. Como forma de agradecimento, as três índias cantam e dançam em frente ao altar. No fundo da casa, apenas o Pagé e sua mulher mantém uma conversa tranquila e num gesto que se repete muitas vezes, Tupã acende um cachimbo de fumo de corda e começa a falar.
A prática de fumar cachimbo também é comum entre as mulheres e até mesmo, entre as crianças da tribo. É comum vê-las com o fumo na mão, quando estão na Opy’i ou quando conversam entre si. A tradição diz que quando um índio está fumando ele entra em ligação direta com Nhanderu (Deus), como se fizesse uma espécie de oração. Se o fumante cuspir, é sinal de que a prece está sendo atendida.
Entre eles, a famosa expressão “cachimbo da paz” tem razão de ser. Pois, quando um indígena vai visitar uma tribo de etnia diferente da sua, seja onde for ele sempre leva consigo seu fumo, pois o ato de acendê-lo significa que ele não veio com intenção de guerrear.


Um entre muitos

Os já pequenos e negros olhos de Tupã ficam ainda menores quando ele sorri. Entre uma palavra e outra, os brancos dentes do índio contrastam com a cor escura de sua pele e cabelos. Apesar da baixa estatura ele não é franzino, seus braços fortes e traços ainda jovens demonstram a pouca idade, que ele não sabe precisar. Cerca de 30 anos.
Para o povo Guarani, não faz sentido falar em semanas, meses, anos ou séculos. O calendário corre diferente e a natureza é a grande regente na contagem do tempo. A jacy (lua) determina a idade dos índios e a época de plantar, colher e caçar. A segunda lua cheia de agosto marca a chegada de mais um ano. A primeira menstruação indica o fim de um ciclo e o começo de outro, quando uma jovem se torna mulher.
Entre os índios da Tekoa Pyau, Tupã é um dos poucos que conversam com os juruás, como são chamados os homens brancos pelos moradores da tribo. E estes diálogos são sempre objetivos, ele não parece gostar muito de prolongar os assuntos. Mas apesar das poucas e diretas palavras, foi exatamente para ser um porta-voz dos índios no mundo branco que em 1992, ele saiu da aldeia Krukutu, no distante bairro de Parelheiros. Sua missão era aprender sobre os não índios. Para isso, passou cerca de cinco anos estudando em escolas públicas do centro da cidade de São Paulo. Aprendeu geografia, história, biologia, matemática e português. “Eu vim para o Jaraguá e morei um tempo sozinho. Quando cheguei aqui, não tinha muita gente, a aldeia era mais vazia, tinha só uma família,” conta.
Desde que chegou na Tekoa Pyau, Tupã foi trilhando seu caminho. Passado o tempo dos estudos e, apesar dos planos de voltar para a Krukutu, ele resolve ficar no Jaraguá, onde ajuda a fundar o CECI, Centro de Educação da Cultura Indígena. Uma escola diferenciada, onde as crianças têm como professores, os próprios índios. Lá, não existem salas de aula. Na prática, elas aprendem a cozinhar, fazer artesanato e até mesmo acender uma fogueira. “Aqui é livre, elas fazem o que querem”, diz Tupã.
Casado e pai de três filhos, hoje, junto com mais duas lideranças das aldeias Krukutu e Tenondé Porãe, ambas em Parelheiros, Tupã representa o Estado de São Paulo na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Um grupo formado por índios de todo o Brasil, que frequentemente vai à capital Federal conversar com ministros e senadores, em busca de soluções para os problemas de todos os povos.
Estes encontros sempre acontecem quando o povo indígena se sente incomodado ou insatisfeito com algo. “Quando tem alguma coisa que não estamos gostando, vamos para Brasília”, diz Tupã enquanto prepara seu cachimbo. Ele também fala que nunca antes o Palácio do Planalto esteve com as portas tão abertas para discutir as questões dos índios. “Antes do governo Lula era muito mais difícil conversar. Agora, tem alguns políticos interessados em nos ajudar.”
Tupã também atende as inúmeras visitas que a aldeia recebe diariamente. Enquanto acompanha os visitantes nas caminhadas pela aldeia, fala da cultura e dos costumes dos Guaranis. Com os representantes dos órgãos públicos, trata dos assuntos de interesse de toda a comunidade e fala dos livros escritos pelos seus irmãos. A ideia de ser um representante do povo Guarani no mundo branco partiu de seu avô Nivaldo, o cacique da aldeia Krukutu, em Parelheiros, onde Tupã passou sua infância. Desta época, as lembranças das ka'agu (florestas) e das trilhas, de como a mãe arrumava suas coisas, ainda despertam saudades. Ele foi criado apenas pela mãe, com a ajuda do avô. Sobre seu pai, o índio não pronuncia palavra alguma, como se ele não fosse fruto da união de dois corpos.
Ironicamente, o velho cacique ouviu os conselhos de um amigo branco da cidade e mandou seu único neto aprender das coisas e modos dos juruás. Falar a mesma língua, de igual para igual. Porém, não se pode dizer que a ideia de trocar a aldeia de Parelheiros pela do Jaraguá agradou o garoto. “Eu não queria vir para cá, mas meu avô falou que eu tinha que estudar para ajudar meu povo e como a última palavra é sempre dos mais velhos, obedeci”.
Agora, Tupã pensa diferente. “Gosto do que faço. Tudo o que eu aprendi valeu a pena, os desafios dessa missão me atraem.” Da época de escola, ainda mantém algumas poucas amizades. “Tenho uns amigos da cidade que sempre vem me visitar aqui na aldeia.”

Apenas a joavy (diferença)

Os dias do mês de agosto são geralmente muito gelados, em especial as primeiras horas e para aquecer uma dessas manhãs, Tupã separa um pouco de lenha, leva para a casa de rezas e em menos de cinco minutos, as chamas da fogueira já dão os primeiros sinais de vida, iluminando e aquecendo toda a Opy’i. O barulho da madeira consumindo no fogo se mistura com o som da voz do índio. Suas palavras em português são curtas e diretas, bem diferentes das proferidas no idioma dele, o Guarani. Na nossa língua, fala apenas o necessário, na conversa com os seus, até a entonação da voz muda. “Se o índio não confia, ele não fala”. É impossível não notar o grande abismo que existe entre os dois mundos e o quanto ele quer manter longe do seu povo a sombra da aculturação.
Ouvir a versão da história contada pelos brancos, aprender a língua invasora e transitar pelas salas e salões do poder representam atos de resistência para os indígenas. Atitudes desesperadas de tentar recuperar o que se perdeu há muito tempo. “Tenho orgulho de ser índio, mas sinto como se estivesse faltando algo”, diz Tupã. Hoje, os Guaranis da Tekoa Pyau dividem o espaço com a rodovia que leva o nome dos assassinos de seus antepassados, os Bandeirantes. Como nós, homens brancos, eles também têm de conviver com o barulho e a poluição de estradas e avenidas. Além da presença cada vez mais expressiva da televisão e toda a influência que ela carrega.
Como uma espécie de anticorpo ou antídoto, Tupã teve que provar do veneno para combatê-lo. É assim que ele tenta manter viva uma cultura milenar, vivendo sob certas leis que não criou. Enquanto toda a aldeia tenta se manter distante, o destino escolhe alguns poucos para um contato direto com os juruás.
Tupã deixou Parelheiros, a mãe e o avô há dezoito anos. Não é mais o neto obediente de antes. Agora já é um homem, com a pesada missão de resistir. Apesar de viver em um pequeno pedaço de terra dentro da cidade, em uma aldeia sem mata, rios ou animais, ele tenta não esquecer o desejo do velho cacique Nivaldo. “Meu avô falou que para ajudar meu povo, tenho que saber usar as coisas que aprendi na cidade.”
Manter-se diferente, guardar histórias e não revelar os segredos que só cabem ao povo indígena e sua tradição. Há coisas que o homem branco não pode saber. Entre si, os índios só falam em Guarani, nos deixam de fora do seu cotidiano, dos detalhes da vida em comunidade. A impressão é que eles nunca vão se acostumar com a presença de juruás em seu lar.

De geração em geração

A pequena Tekoa Pyau é uma grande família. Cercados pelos muros que delimitam seu espaço, os Guaranis compartilham dos mesmos medos, preocupações e alegrias. Realmente vivendo em comunidade. No cotidiano da aldeia, uma das grandes preocupações das lideranças são as crianças e os jovens. Por lá, eles são a maioria – ao todo somam mais de 250 - e enquanto crescem, os mais velhos tentam manter viva dentro de cada um deles a cultura dos antepassados. “Fazer isso não é difícil, pois eles já nascem com ela, o mais difícil é manter as coisas da cidade afastadas deles”, fala Tupã.
Mas, diferentemente do que fizemos com eles, os índios não querem impor nada aos mais jovens. A conscientização é feita aos poucos, desde crianças, por meio da convivência, das conversas e das experiências trocadas. Nas palavras de Tupã, “uma educação de vida.” Ele também fala, “todo finalzinho de tarde, a gente se reúne na Opy’i para conversar com as crianças e com os adolescentes”.
Nessas reuniões, os mais velhos tentam manter afastados certos valores, como a competição e a ganância. “Dentro da escola, a criança branca tem que ser melhor que todos e aprendem que tem que ganhar dinheiro para ter uma qualidade de vida. Aqui, nós queremos ensinar o respeito aos outros, para viver em paz.”.
A convivência com o avô, a mãe e os demais habitantes da aldeia Krukutu proporcionou ao índio a sabedoria dos antigos costumes, crenças e hábitos indígenas. Sua infância em Parelheiros foi regada a banhos na represa e longas trilhas nas matas, que sempre acabavam nas praias do litoral sul paulista, como a de Itanhahein. Para Tupã, isso é muito importante. “Eu passei muito tempo fora da família. Nos momentos mais difíceis é ela que ajuda e teve vezes, enquanto morei sozinho aqui no centro, que senti muita falta desse apoio”.
O fato de ter vivido sua adolescência estudando no centro da cidade, não impediu Tupã de viver o importante momento do rito de passagem do seu povo. Para eles, essa cerimônia simboliza o amadurecimento, o inevitável destino de crescer. “Antes do rito, a gente se afasta por um ano e durante esse tempo, aprendemos a construir nossas casas com nossas próprias mãos, a cozinhar, cuidar dos filhos. Chega uma hora que temos que viver sem nossos pais. Crescer, casar, educar as crianças. Saber dividir as tarefas com nossas companheiras e respeitar o espaço do outro”, conta Tupã.

Dois mundos

Andar pela Tekoa Pyau e não perceber o quanto a nossa cultura já está presente na vida dos índios é quase impossível. Dentro das ocas, geralmente feitas de madeira, as músicas que eles ouvem são as nossas, vestem as nossas roupas, apesar de não se importarem com a combinação de cores e estilos. A maioria tem celular que, ou está pendurado no pescoço, ou dentro do bolso.
O choque entre as duas culturas se deixa perceber nos pequenos detalhes, até mesmo na conversa em Guarani de um dos índios ao celular. Ou então, quando um povo resolve manter viva sua língua mãe, por meio de suas crianças, mesmo vivendo dentro de uma cidade como São Paulo. Todos eles sabem da sua difícil condição, principalmente, quando estão inseridos em uma grande metrópole. Conhecem seus direitos e lutam para que sejam respeitados.

Por isso, Tupã se tornou os olhos, os ouvidos e a boca de todos os índios da aldeia Tekoa Pyau. Mas apesar disso, ele ainda se mantém distante do mundo que aprendeu a conviver. Os estudos, as roupas, o contato diário e as conversas com os juruás não o despiram da sua condição primeira. “Não é fácil, mas tenho muito orgulho de ser índio.” Para o povo Guarani, esse orgulho garante o resto dos dias, a força para resistir e a sabedoria para se manter longe das coisas da cidade.
Os muros que cercam a aldeia simbolizam também a fronteira de dois mundos diferentes. Do lado de fora um olhar cansado e viciado, acostumado a estranhar tudo o que é diferente. Dentro, a consciência e o orgulho dessa diferença. “É mais fácil a gente entender a cidade, do que a cidade entender a gente”, diz Tupã.

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