19 de abril de 2008

Contra a maré




Os Franciscanos são religiosos que escolheram não acumular bens, viver da mendicância e manter um contato maior com moradores de rua. Ao contrário do que prega a sociedade fazem da pobreza, uma opção de vida.

Por Michele Carvalho.

Bem na esquina da Rua Plácido de Castro na Vila Invernada, onde as donas de casa retornam da feira carregadas de sacolas e onde as crianças correm a pé ou de bicicleta, encontro uma casa que logo de cara mostra por que está lá. Ao ver franciscaninhos pintados na parede principal da casa, percebo ter chegado à Toca de Assis, Bom Samaritano.
Toca de Assis é o nome dado a fraternidade que tem como objetivo acolher e viver como os pobres, são casas onde vivem os Franciscanos, quando não estão nas ruas, e é também onde os moradores de rua encontram um lugar para fazerem suas refeições diárias, tomar banho, cortar o cabelo e fazer a barba.
Bom Samaritano é o nome de uma dessas casas e, quando me aproximo do portão vejo uma garagem com algumas telhas encostadas no lado direito da parede, alguns bancos e ao centro uma mesa comprida. Ao entrar, preciso aguardar alguns minutos na garagem enquanto as irmãs estão em oração.
Nesta garagem, alguns homens dormem encostados nessa mesma mesa ou na parede, imunes ao canto do pássaro preso na gaiola e aos comentários de outros homens que assistem à televisão, interessados na reportagem sobre o Brasil da década de 60. Um deles bem mais curioso, o que abriu o portão e avisou as irmãs de minha presença, não tira os olhos da tela e também participa da reportagem com suas lembranças.
Esses homens são moradores de rua, que além de satisfazer as necessidades básicas também participam de orações. As irmãs explicam que no começo a maioria deles procura a casa somente pela comida, mas com o passar do tempo alguns se interessam também pelas orações.


O momento da renúncia

Quando entro na casa encontro um grupo de jovens meninas, todas com suas vestes marrons e cabelos curtos, tão ocupadas com os afazeres rotineiros da casa que algumas nem se incomodam muito com a minha presença. Sento ao lado da mesa, onde ainda está posto o café-da-manhã, Cibelle Lopes Lucas, uma das moças que moram na casa senta ao meu lado e então começamos nossa conversa.
Ela entrou para a fraternidade com 22 anos e hoje com 25, fala com um visível conhecimento das regras e fundamentos da vida religiosa. O primeiro sinal de sua vocação surgiu quando ela participou de um retiro espiritual na cidade mineira de Governador Valadares, depois disso ela se viu cada vez mais envolvida com trabalhos sociais até que chegou um momento em que sentiu que não fazia o bastante, “o coração pede mais, o que você faz é pouco”.
Impulsionada por essa necessidade de fazer mais pelos moradores de rua, Cibelle não encontrou outro conforto, a não ser desistir dos seus planos de fazer uma pós-graduação para entrar na Fraternidade Filhos e Filhas da pobreza iniciando sua vida de renuncias.
Quem a vê com as vestes peculiares dos religiosos, sem nenhuma maquiagem nem acessórios de beleza, não imagina que é formada em Ciências da Computação, nunca antes pensou em ser freira e nem reparava nos mendigos de sua cidade. Mas confessa que o começo foi difícil, não conseguia nem ao menos estender a mão aos pedintes, mas a convivência ajudou muito e hoje abraça a todos que encontra nas ruas.
A notícia do seu ingresso na Toca não foi bem recebida por seus pais, pois sua irmã já fazia parte da Fraternidade. Seu pai investiu em seus estudos e depositou nela todas as esperanças de ter uma filha formada. Quando questionada por sua família qual o sentido de gastar tanto dinheiro para depois abandonar tudo, chorou muito e não compreendia a atitude de seus familiares.
Ainda hoje, quando se trata de família, a vida de consagração total a Jesus se torna menos compreensível ainda aos olhos da sociedade. Os religiosos e religiosas não falam muito com seus familiares e esse pouco contato é feito uma vez por mês pelo telefone. Eles também podem receber a visita da família na Toca e tiram férias de sete dias por ano.
Cibelle diz que a saudade aperta, pois são seres humanos e não estão livres de sentimentos, mas o amor que os impulsionam a levar essa vida é inexplicável e sobrenatural, “essa vida é humanamente impossível”.


A vida na Toca

As quinze irmãs dividem a casa Bom Samaritano, com o espaço reservado para as coisas dos moradores de rua, ou irmãozinhos, como são chamados por elas. Eles têm sabonete, xampu e outros acessórios de higiene, tudo bem separado em potes de plástico com seus respectivos nomes, pois as irmãs têm um controle de quem freqüenta a casa todos os dias.
A casa e todo o restante são doados, as irmãs e os pedintes dependem dos benfeitores para sobreviverem. Existem também, algumas pessoas que não se consagraram totalmente à vida religiosa, mas auxiliam a casa e seus freqüentadores.
Os moradores de rua são recebidos na casa na parte da manhã para o café e depois voltam para o banho e o almoço. Todos já se conhecem e também às irmãs, conversam e contam suas histórias. Depois do atendimento dentro da casa, é hora das irmãs saírem para a rua e ir ao encontro dos que não vão até elas.
Esse trabalho é chamado de “Pastoral de Rua” é realizado de sábado a quarta-feira, pois as quintas e sextas-feiras são reservadas para as orações. Elas carregam uma caixinha com os primeiros socorros e vagam sem rumo, até encontrar alguém que precise de seus cuidados.
As pessoas que elas encontram têm as unhas e cabelos cortados, a barba feita, ferimentos tratados e alguém para conversar.
Nas ruas elas encontram todo o tipo de pessoa, algumas se surpreendem com o fato das Franciscanas se sentarem ao seu lado e as questionam porque são diferentes das outras pessoas que passam e nem notam sua presença. Outras já perderam a condição humana e não podem mais ficar nas ruas, pois já não têm saúde para viverem sozinhas. Então são levadas para as casas de acolhimento.


O convívio com os moradores de rua

Ao caminharem pelas ruas do centro de São Paulo vestidos com as marronzinhas, nome dado as suas vestes, de chinelo ou descalços conversando e cuidando dos moradores de rua, os Franciscanos são tachados de loucos. Cibelle diz que a maioria das pessoas não vê sentido em viver uma vida de pobreza e dificuldades, “compartilhamos também dos mesmos preconceitos e humilhações dos moradores de rua”.
Já com os sem teto a situação é bem diferente. Os religiosos são respeitados e bem recebidos, mas Cibelle admite que a aproximação é mais fácil pelo fato deles usarem as marronzinhas e também afirma que eles sentem muito medo e não deixam ninguém se aproximar, pois são muito maltratados nas ruas, “A Rota passa e tira tudo dos irmãos”. Ela conta as histórias que viveu na rua e fala que sua luta é para dar dignidade a essas pessoas.
Trabalhando como porteiro da Capela de Santo Antonio no Centro de São Paulo há 11 meses, José Luiz César, 48, é testemunha do trabalho dos Franciscanos. Ele fala com firmeza sobre os Franciscanos e me indica todas as Tocas da região. Em pé, na frente da Capela José Luiz conta do cuidado diário que os estes religiosos têm com os pedintes daquela região, “Eles sempre estão aqui, chegam um pouco antes da missa e logo depois de assistirem à celebração vão ao encontro dos sem teto”.


O início da Toca

Segundo a história, São Francisco de Assis foi um homem rico que começou sua conversão dando esmolas para os pobres e leprosos, até chegar um momento onde doaria suas próprias roupas. Contrariado com as atitudes do Santo, seu pai exigiu a devolução de todo seu dinheiro doado em forma de esmolas.
Em sinal de protesto e renúncia, São Francisco despiu-se em praça pública abrindo mão da herança de sua família para viver com os pobres e leprosos de sua época.
Assim como São Francisco, os religiosos de nossa época, inspirados nesse amor a Jesus Cristo e aos mais necessitados também fazem votos de obediência, pobreza e castidade e seguem esse caminho trilhado há mais de oitocentos anos.
Entre esses seguidores está o padre Roberto José Lettieri, o fundador da Toca de Assis. Quando ainda era um seminarista, ele saia todas as noites para conversar e ajudar as pessoas que viviam nas ruas da cidade de Campinas, com o tempo essa prática foi ganhando mais adeptos e em 1994 surge a primeira Toca. Hoje ela existe em quase todos os estados brasileiros, saciando essa ânsia de viver o carisma do Santo de Assis.



Entre judeus e franciscanos

Mesmo dentro de sua casa os franciscanos encontram dificuldades em realizar suas boas ações


Existe também outro tipo de Toca, são as casas de acolhimento. Diferente da Casa Bom Samaritano, esses lugares abrigam as pessoas que não têm mais condições físicas nem psíquicas de viver sozinhas nas ruas, elas moram com os religiosos que cuidam da alimentação, das roupas e até levam os moradores da casa para o hospital, quando necessário.
Mas acontece que nem todo mundo aceita esse trabalho dos Franciscanos, é o caso dos vizinhos da Vila de Assis, uma Toca de acolhimento que funciona nos Campos Elíseos, região central de São Paulo. Lá os moradores que residem em volta da casa reclamam da grande movimentação de pessoas, principalmente moradores de rua.
Ao todo são 110 pessoas, acolhidas por 17 Franciscanos vivendo na casa dos Campos Elíseos, sem contar os moradores de rua que vão à casa todos os dias para fazerem suas refeições e tomar banho, pois o trabalho desses Franciscanos se estende também as pessoas que não moram na casa.
Desde a inauguração da casa, há quatro anos, os Franciscanos e os moradores da casa são alvo de processos, abaixo-assinados e reclamações da vizinhança, “existe um processo de 200 páginas”, diz o irmão Jhony Cruz da Silva, 23, um dos irmãos que atuam na casa.
Os irmãos também atribuem às reclamações ao fato da maioria dos vizinhos serem judeus, “acredito ser também uma questão religiosa”, diz o irmão Jhony ao explicar os motivos dos problemas que enfrentam com os moradores da região. O caso já chegou até os ouvidos do prefeito Gilberto Kassab, mas para a revolta de alguns, a casa continua com as portas abertas ajudando aos que precisam.

Nenhum comentário: